domingo, 13 de maio de 2007

Friedrich Nietzsche (1844-1900)

Autor controverso, ligado ao que se costumou chamar " Crise da Razão", era filho de um pastor luterano que morreu quando ele tinha apenas quatro anos. Com múltiplos interesses, dos quais se destacam a filologia, a música e a filosofia, teve uma vida conturbada, atormentada pela doença física (sífilis) e pela luta contra o "demónio" da loucura que o havia de neutralizar durante mais de uma década, precisamente entre Janeiro de 1889 , mês em que beija um cavalo em Turim como reacção a uma brutal agressão que o animal estava a sofrer por parte de um cocheiro, e 25 de Agosto de 1900, data em que acabou por falecer.
Nietzsche é um autor de grande "verve", senhor de uma escrita poderosa, dono de uma vasta erudição e profundamente empenhado em denunciar o caminho do optimismo racionalista de raíz platónico-cristã como ilusório, acusando o sua figura tutelar - Sócrates - como "génio da decadência".
A obra que temos em análise ," A Origem da Tragédia" , foi publicada em 1872 e é a sua primeira obra; constitui uma homenagem a Richard Wagner, por quem Nietzsche nutria uma profunda admiração. No entanto, o primeiro objecto da admiração de Nietzsche foi o filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860), admiração de que partilhava também o próprio Wagner e o seu círculo de amigos.
Esta obra incide sobre a relação entre a Estética e a Civilização, ou seja, centra-se na análise da Tragédia enquanto género dramático, que muito para além de ser meramente um espectáculo, se confunde com a religiosidade primitiva dos gregos e com a própria génese do panteão olímpico. Com efeito, os dois génios tutelares da tragédia ática são Apolo e Diónisos, deuses do sonho e da embriaguês, respectivamente.
Apolo e Diónisos representam um par dialéctico, ou seja, um par de adversários cuja relação agónica constitui uma necessidade genética da própria obra de arte, neste caso, da Tragédia.
O fundo da natureza, a sua força pletórica, o Uno Primordial, é representado por Diónisos, deus da embriaguês e do delírio,da fúria sexual e da orgia, do excesso (hübris) e também da música enquanto arte primeira; a sua intervenção é "moderada" por Apolo, o deus da luz solar e por isso, de tudo o que é visível: das artes plásticas, da separação da realidade em seres individuais(individuação) e também do sonho enquanto manifestação da imagem.
O combate entre estes deuses resulta numa forma equilibrada de arte dramática que Nietzsche considera ser a tragédia ática, nomeadamente nos seus dois expoentes máximos: Sófocles e Ésquilo. Já um terceiro autor - Eurípedes - é considerado por Nietzsche um alter ego dramático de Sócrates ou, na sua própria expressão, uma
" máscara dramatúrgica", uma vez que Sócrates parecia "alérgico" ao teatro e à poesia em geral.
Nietzsche considera o " socratismo estético" como a grande ruptura que provoca a morte da tragédia por " suicídio" e a sua transformação em "comédia ática". Essa transformação passa por alterações quer formais, quer de conteúdo em relação ao que o autor considera ter sido a tragédia canónica.
Do ponto de vista formal, o papel atribuído à música e ao coro passa a ser muito menor, sendo o protagonista na sua performance individual, sobrevalorizado; Nietzsche vê aqui, um predomínio da vertente individualista-racionalista-optimista sobre o pessimismo trágico. Acresce ainda, do ponto de vista do conteúdo, uma " subida do público ao palco", querendo com isto dizer que é a vida do próprio público, o seu quotidiano comezinho, que passa a ter honras de enredo; assim, dos heróis mitológicos e dos deuses, se passa a contar a história do marido enganado e do escravo espertalhão que se torna rico proprietário: é segundo ele o " aburguesamento" da tragédia, o que corresponde a uma transformação em forma dramática medíocre.
Nietzsche, no fim desta obra irá, por analogia, relacionar este período - o longínquo séc.IV a.C.- com a segunda metade do séc. XIX e ver neles claro paralelismo, nomeadamente a "ditadura" do crítico, o papel vulgarizador do jornal, e a transformação de todo o passado em História, o que lhe dá uma dimensão analítico-arqueológica, fazendo de conta que nada temos que ver com isso.
Por fim, Nietzsche propõe a retoma da antiga aliança entre Apolo e Diónisos, uma aliança guerreira, uma aliança de verdade.
Pode dizer-se que essa aliança é uma miragem, mas também se pode observar que em matéria da "ditadura" do jornal, Nietzsche não tinha ainda visto nada, uma vez que morreu 50 anos antes da televisão ter feito a sua entrada triunfal no mundo; se ditaduras do espírito ou da falta dele existem, esta será incontestavelmente a maior, com um pormenor cínico e mortífero: o de fazer passar a sua enorme distância focal e manipuladora dos conteúdos por "carnaval" dionisíaco.
Sem dúvida, Nietzsche foi um profeta e terá afirmado que a sua doutrina anteciparia os próximos duzentos anos - nos primeiros cem, já acertou em cheio.

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