terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Tensão Cultural

Se é consensualmente aceite que os valores éticos se caracterizam por uma certa universalidade , já os valores culturais se pautam por uma extrema diversidade.
Com efeito, prezar a vida e a dignidade não é mais característica de um povo do que de outro e são valores universalmente assumidos; já comer com pauzinhos ou com faca e garfo, dizem respeito apenas a contextos socio-culturais diferenciados e uma ou outra prática nada acrescenta ou diminui ao valor ético de quem as usa.
Infelizmente, nem tudo é assim tão inócuo no plano das práticas que se alegam serem de índole cultural no sentido de tradicional. "Tradições" houve ou há, que violam os direitos das pessoas e que não encontram na sociedade contemporânea justificação possível.
Por exemplo: os casamentos combinados, os crimes de "honra" ou as mutilações genitais não podem ser aceites numa sociedade moderna ainda que possam tentar ser "justificados" com a "tradição".
Nada justifica actos de violência e/ou prepotência que se imponham à vontade dos sujeitos, ou mesmo que contem com a sua aquiescência, se forem contrários à liberdade e à dignidade da pessoa humana. Assim, o caso do "canibal alemão" que alegou ter literalmente comido, depois de ter morto, um amigo, a pedido do próprio, ainda que pudesse corresponder à verdade, não teria justificação ética possível uma vez que a ninguém assiste o direito legal ou moral de atentar contra a vida de outrém, mesmo a seu pedido.
Se fossemos por essa via veríamos que muitas das práticas que hoje consideramos cruéis e desumanas já foram correntes noutros tempos históricos e mesmo ainda hoje em certos casos, e até já foram tradições aceites: a escravatura, a tortura e o "apartheid" já foram tradicionais e até legais, sem que isso os possa, em caso algum, legitimar.
No Antigo Egipto era costume enterrar o arquitecto da Pirâmide juntamente com o Faraó, na Índia queimar a viúva na pira funerária do marido, na China assassinar à nascença crianças do sexo feminino; em Roma os pais e maridos dispunham do direito de vida e de morte sobre as mulheres e os filhos; no Irão e na Arábia Saudita as mulheres adúlteras podem ser mortas à pedrada e ainda recentemente (até 1977), a legislação portuguesa permitia ao marido assassinar a mulher por adultério em flagrante delito.
Nada disto, como em geral não respeitar os outros e as leis comuns, pode ser considerado como legítimo, ainda que se pretextem usos, costumes e tradições.
Os valores culturais ainda que possuam uma legitimidade própria, devem estar enquadrados pelas leis gerais e pela universalidade ética como condição sine qua non da possibilidade de vida em comunidade, limitando o mais possível os focos de tensão cultural que podem descambar em situações de violência e desordem social graves.

António José Ferreira


TAREFA:

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