quinta-feira, 7 de junho de 2007

O "novo" ECD

Estatuto da Carreira Docente:
ou de como se combinam a Ficção Científica, a Revolução Cultural Chinesa e a “Metamorfose” de Kafka


O novo Estatuto da Carreira Docente que é na globalidade um documento medíocre e penalizador dos profissionais da educação, representando um claro retrocesso nas relações laborais em Portugal com um sector de actividade, os professores, a verem-se subitamente transformados no único bode expiatório do alegado falhanço de todo um Sistema Educativo em permanente instabilidade, ao sabor de ventos e marés de variadíssimas etiologias, sem que nunca se consiga a tranquilidade necessária à prossecução dos seus objectivos e sem que as verdadeiras responsabilidades quanto a isso tenham sido alguma vez, de facto, apuradas e veja-se a lista de inúmeras e recorrentes peripécias relativas a Programas, Exames, Concursos, etc., etc., etc.. No entanto, há situações particulares da sua regulamentação que não apenas raiam, mas penetram fortemente na esfera do absurdo. Tudo daria vontade de rir se não tivesse gravíssimas consequências na vida de milhares e milhares de cidadãos que os professores também são, apesar dessa condição lhes ter vindo a ser, na prática, retirada um pouco todos os dias.
Refiro-me concretamente à separação da Carreira entre duas categorias hierarquizadas, a de Professor e a de Professor Titular. Para além da bizarria do título, algo incongruente com a feição republicana do Estado, (que isto da linguagem também manifesta latências inconfessadas). A proposta de Concurso para acesso a essa nova categoria apresentada pelo Ministério da Educação em grelha com itens pontuáveis, só pode ter sido concebida sob três influências estilísticas concomitantes:

- Primeiro: Ficção Científica – de facto, é preciso lembrarmo-nos das novelas dos velhos mestres deste género Philip K. Dick, Simak, Heinlein, Le Guinn e outros, para que possamos entender a natureza do buraco negro legislativo que absorve e “engole” por completo, pelo menos, 30 anos de existência nacional, em que houve leis que legitimamente estiveram em vigor e foram da responsabilidade de órgãos de soberania legitimamente constituídos, pois Portugal vive desde 1976 sob um regime constitucional e tem tido Assembleias da República eleitas, Governos nela sufragados, Presidentes da República eleitos e empossados, Tribunal Constitucional em exercício e, consequentemente, equipas governativas na Educação, com Ministros, Secretários de Estado etc., que, ao que parece, nunca terão existido, pois as propostas de avaliação do desempenho dos professores dos 8º, 9º e 10º escalões ( aqueles que têm mais do que 18 anos de serviço, alguns muito mais), elide completamente o tempo anterior a 1999-2000, como se Portugal se tivesse constituído agora e as suas remotas raízes remontassem de há 8 anos atrás.
Pergunta-se se terão de facto existido todos os anos anteriores, ou terá sido apenas uma ilusão induzida por algum génio maligno, daqueles a que Descartes faz referência.

- Segundo: Revolução Cultural Chinesa – até ao presente este tenebroso episódio da história contemporânea tem sido o paradigma da tábua rasa acima referida e, até ao presente Estatuto da Carreira Docente, terá sido a única situação em que e para usar a linguagem metafórica predilecta da equipa ministerial, “ generais”, vão passar da noite para o dia a “recrutas” e
“ catedráticos”, a “caloiros”, tal vai ser o absurdo da situação que irá conduzir a que milhares e milhares de professores de uma geração que deu Tudo ao Sistema e nas condições que se conhecem, com a casa permanentemente às costas, etc., etc., venham a ser objectivamente despromovidos, pela aplicação de critérios retroactivos completamente desconhecidos e impossíveis de conhecer a não ser para quem é bruxo ou bruxa . Num estado de direito como de Portugal se diz que é, o princípio da boa fé deve nortear a prática das instituições públicas e são imorais e anti‑jurídicas as práticas legislativas que o contrariem, o Estado deve ser uma pessoa de bem e, por isso, os seus representantes devem portar-se como tal . É então absurdo que dezenas de milhares de profissionais venham a ser avaliados e classificados por critérios que não poderiam conhecer pois, pura e simplesmente, NÃO EXISTIAM e os que existiam foram, pela esmagadora maioria, plenamente cumpridos, como não poderia deixar de ser. Lembremo-nos que foram as instituições (Ministros que propuseram, Governos que aprovaram, Assembleias da República que legislaram, Presidentes da República que promulgaram e Tribunais Constitucionais que os verificaram! ) e não terão sido, certamente, os professores que os estabeleceram. Portugal não esteve propriamente “ sem rei, nem roque” nos últimos 30 anos e a ter estado, haverá toda uma cadeia de responsabilidades e de legitimidade constitucional e democrática que, na prática, está a ser completamente descartada com a aparente complacência dos órgãos de soberania co‑responsáveis.
Pergunta-se : Será que houve alguma ruptura constitucional? Uma Revolução, um Golpe de Estado ou qualquer coisa desse género? Não tendo havido, pelo menos, de maneira explícita, não se entende como se poderão mudar as regras estruturais a meio de tão longo jogo. E repare-se que não estou a referir-me a expectativas, como a idade de reforma ou assim; estou a referir-me a situações concretas e definidas estatutariamente que agora são subvertidas de forma perfeitamente inusitada e casuística, sem qualquer fundamento de natureza legal que, pelo menos, se coadune com a representação que em geral os cidadãos devem ter de um Estado de Direito; de facto, só personagens como as do famigerado
“ Bando dos Quatro” e quejandos, poderiam ter congeminado esta situação.

- Terceiro: a “Metamorfose” de Kafka: Franz Kafka é um dos maiores génios do absurdo realista e concerteza que muitos de nós se recordam da sua novela “ Metamorfose”, em que o personagem principal acorda transformado num insecto tipo carocha que se encontra deitado de barriga para cima e não consegue virar-se. Eis o que está no presente transe a acontecer aos professores : subitamente e numa situação nada ficcional
( tal como as de Kafka , aliás), vêm-se confrontados com o pavor de um conjunto de medidas que não podiam sequer ter adivinhado, e que alteram substancialmente para pior as condições do seu desempenho, da sua carreira, em suma, da sua VIDA.
Uma palavra importante para os sindicatos: se esta disposição terrorista do Ministério da Educação passar, é bom que pensem seriamente em reconverter-se em outra coisa qualquer e mudar de actividade, pois a sua existência deixará de fazer qualquer sentido sério e passará a ser meramente folclórica; nunca desde que me conheço a série negra de derrotas foi de tão aterradora dimensão perante a impotência do movimento sindical de que é exemplo o recente conselho dado por um dirigente da FENPROF dos mais activos e habitualmente combativos, e refiro-me a Mário Nogueira, que declarou à Comunicação Social que os professores dos referidos escalões deveriam concorrer todos a Titulares para “ inundar o Ministério de candidaturas!” ; se isto é resposta, e se ficarmos por aqui, para além das já tradicionais e pelos vistos infrutíferas “inundações de rua” (manifestações), greves, abaixo-assinados e algum folclorismo carnavalesco relativo a situações que não são, de modo algum, para brincadeiras, mais valerá dizer como a minha avó: - “ Está bem, sim Rosa!!! “

Post Scriptum 1: os Sindicatos, nomeadamente os da FENPROF como o SPGL, têm dezenas de milhares de sócios a quem são descontadas automaticamente quotas de valor relevante e possuem relativamente significativos Serviços Jurídicos; Ora, sendo estas medidas e estes critérios de legalidade e de constitucionalidade mais do que duvidosa, pois se trata de disposições com efectiva retroactividade que não respeitam o princípio da boa fé, para além da sua flagrante imoralidade , sugiro que urgentemente os encarreguem da contestação em todas as instâncias possíveis desta total e completa iniquidade legislativa.

Post Scriptum 2: Esta questão do E.C.D. e da sua regulamentação está inquinada desde o princípio, como penso ter demonstrado em relação aos critérios para acesso à Carreira de Professor Titular uma vez que os já tornados públicos não podiam ser do conhecimento dos professores, há 30, há 20, há 10 anos ou até mesmo, há seis meses, visto que a legislação em vigor sob a qual foi contratualizado o exercício profissional dos docentes não os incluía, nem sequer os indiciava; por aí se demonstra à saciedade que não se pode ser avaliado ou classificado por critérios que não existiam .
A reiterada, obstinada e obsessiva insistência da equipa dirigente do M.E. nesta aberrante monstruosidade, demonstra uma por demais evidente falta de cultura democrática e até, de Cultura “tout court”. A Sr.ª Ministra que é socióloga de formação, apesar de o não parecer e costuma acusar as Escolas de “anomia”, está a contribuir fortemente para que a anomia total se instale. Costuma também a Sr.ª Ministra “ encher a boca” com a necessidade absoluta de promover “os professores que dão aulas” e, se por absurdo, aceitássemos discutir aberrações como a de se classificarem pessoas pelo seu desempenho pretérito baseado em critérios então inexistentes, ainda assim teríamos que denunciar a incongruência entre o discurso da Sr.ª Ministra ( o tal dos “ professores que dão aulas”) e o texto da “ proposta” que vem apresentar para o acesso à categoria de Professor Titular, onde conta tudo, menos “ dar aulas”, ou seja, todos os cargos de natureza burocrática são pontuáveis e a prática lectiva fica a zero ( zero mesmo !...). Ainda por cima, sabendo como sabe quem está no “métier” que os cargos que se pretende valorizar são desempenhados, em regra, através de um sistema de cooptação só acessível a poucos e invariavelmente os mesmos dentro de cada Escola, o que justifica o provérbio de que “mais vale cair em graça do que ser engraçado” e o mais engraçado de tudo é que ainda que assim não fosse e devendo ser os tais cargos de desempenho rotativo, certamente que para que todos os desempenhassem levaria mais do que os 7 anos que se pretende que contem para o Concurso, o que implica que seja literalmente
“ deitado ao lixo” todo o tempo e Carreira em que os docentes fizeram tudo o que lhes foi exigido e em inúmeros casos, muito mais. É claro que só se fossemos ingénuos acreditaríamos na bondade destas disposições e é claro também, que se trata de uma forma grosseira de limitar o acesso da maioria dos professores a um novo topo de Carreira e de despromover, cinicamente, até os que já lá se encontravam.
Trata-se obviamente de “ um fato por medida” para que sirva a quem já se encontra nos órgãos dirigentes das Escolas e a quem em seu redor orbita e só assim se explica o entusiasmo do cavalheiro que até nem se esqueceu de levar uma gravata cor-de-rosa para o programa “Prós e Prós” sobre Educação com que a “independente” RTP nos brindou há uns tempos.

Post Scriptum 3: É óbvio que este Governo utiliza, ainda que de forma canhestra, apesar de dever ter encargos vultuosos para remunerar “ spin doctors”, as velhas e relhas tácticas do “ salame” e da “gangrena”.
A primeira consiste em cortar a sociedade às fatias e tentar “ comê-las” uma por uma e veja-se: começou nos juízes e nos seus “ privilégios”, passou pelos polícias, deu a volta aos militares, derivou para os médicos e enfermeiros para acabar e se fixar nos professores, “esses malandros!”
A segunda consiste em diagnosticar “gangrena” que implique a amputação da perna, por exemplo, e perante os rogos aflitivos do “ doente” chegar à conclusão que afinal, é só preciso “ amputar o pé”, ao que o “doente” aliviado, irá exclamar: “Obrigado, Senhor Doutor! ” Só que como se costuma dizer, o livro que andam a ler não foram eles que o escreveram e a tradução que consultaram é péssima; pensam ter inventado a pólvora mas de facto foram os chineses a quem até, inclusivamente, já tentaram vender mão de obra barata; talvez estejam a pensar nos professores que vão passar a “disponíveis”!

Post Scriptum 4: Por falar em Bando dos Quatro, na China há “um país, dois sistemas”. Em Portugal, será “um país, três sistemas”: uma vez que há um Estatuto da Carreira Docente para o Continente, este que agora foi promulgado e outros dois, um para cada Região Autónoma. Um para a Madeira, ligeira mas “benevolamente” revisto e outro para os Açores, que é precisamente o mesmo que antes vigorava para todo o território nacional.




Março de 2007

António José Carvalho Ferreira, Professor (desde 1976-77),
Sócio do SPGL (desde 1977),
Membro da Assembleia Municipal do Barreiro (desde 1989),
Co-fundador da Secção do Barreiro do Partido Socialista (em 29 de Abril de 1974)